Estávamos mergulhados nuns trabalhos sobre Marx e O Capital, mas não deixávamos de ir dando resposta a outras solicitações. Vindas de fora, ou complementares, do foro pessoal. Até para respirar um pouco, vindo à tona…
 
Andávamos, portanto, lá pelos os anos 70 do século XIX (o Livro Primeiro de O Capital – o único de que Marx acompanhou a edição – foi publicado em 1867. E aconteceu que, como sempre, estávamos a pensar na “mercadoria”, na “mercadoria-armas”, na(s) guerra(s), na luta pela Paz.
 


Aconteceu que, numa dessas vinda à superfície, numa dessas pausas necessárias, pegámos num outro trabalho entre mãos, dos considerados leves, refrescantes, e ficámos presos a recordações, não desse longínquo final do século XIX (não tão longínquo quanto isso... só de 140 anos!), mas de há 40 anos, em que ajudámos à elaboração e distribição de uma publicação chamada O Manda-Chuva.
 
Pois nessa publicação, de tão boas memórias, numa “proposta de lei à Câmara dos Deputados” encontrámos uma “ponte” para 1871, para as reflexões de que pretendíamos fazer curta pausa, para este texto que andava em elucubrações.
 
Se supersticioso, diríamos que tinha sido sorte. Não o sendo, anotamos a coincidência… e aproveitamo-la.
 
“Seis metralhadoras…”
 
Transcreva-se do Diário do Governo, nº 178, de 10 de Agosto de 1871:
 
«Em virtude da resolução da camara dos senhores deputados se publicam as seguintes propostas de lei
 
Proposta de lei º 6-K
Por occasião da ultima guerra franco-allemã mais um invento importante appareceu: a metralhadora. Desde então, quasi todas as nações da Europa têem augmentado os seus meios de combate adoptando esta arma, a qual, se pôde dizer, é hoje objecto indispensável no armamento de qualquer exército regular.
 
Armar uma das baterias do regimento de artilharia montado com um número de metralhadoras igual ao das bôcas de fogo de uma bateria de montanha em tempo de paz, parece acertado e urgente.
O governo espera que concordareis com esta opinião, e que lhe facultareis os meios de adquirir seis metralhadoras com seus reparos e petrechos, e correspondente cartuxame; para o que tenho a honra de submetter á vossa approvação a seguinte proposta de lei.
 
Artigo 1º É o governo auctorizado a despender com a compra de seis metralhadoras com seus reparos, petrechos e correspondente cartuxame, até á quantia de 7:900$000 reis.
Art. 2º É também auctorizado o governo a realisar esta quantia pela maneira que entender mais conveniente.
 
Art. 3º Fica revogada toda a legislação em contrario.
Secretaria d’estado dos negócios da guerra, em 9 de Agosto de 1871. = José Maria de Moraes Rego.»
 

 

 
“Negócio em expansão”
 
Para a mesma pausa (e outras), tínhamos “à mão de semear”, isto é, aos olhos de ler, um artigo no nosso semanário com o título acima, com o ante-título de Estados Unidos lideram um negócio que cresceu 24% - Comércio mundial de armas. E o corpo do artigo começava esclarecedoramente: «o comércio mundial de armas convencionais aumentou 24 por cento entre 2007 e 2011, de acordo com um relatório divulgado, dia 20, pelo Instituto Internacional de Estudos para a Paz, sedeado em Estocolmo (SIPRI)».
 
Depois, informava que os EUA mantinham a hegemonia mundial como maior exportador (30% deste lucrativo comércio), enquanto a Índia se destacava como país que mais armamento comprara (10%), seguida pela Coreia do Sul (6%), Paquistão (5%), China (5%) e Singapura (4%) e que os 5 maiores exportadores (EUA, Rússia, Alemanha, França e Reino Unido) obtiveram, no período considerado, 75% das vendas totais.
 
Os EUA tiveram um crescimento de quase 25% em relação ao quinquénio de 2002-2006, sendo os seus maiores clientes a Coreia do Sul, a Austrália e os Emirados Árabes Unidos. Sublinhe-se que a Alemanha aumentou em 37% as suas vendas, designadamente para o seu melhor cliente, a Grécia (com o que, inevitavelmente, se teria endividado!).
 
Ainda segundo esse relatório, a Ásia e a Oceânia receberiam 45% das exportações dos EUA, seguindo-se o Médio Oriente (27%) e a Europa (18%), representando o sector da aviação mais de 60% dessas exportações, em grande parte devido à venda à Arábia Saudita de 84 caças F-15GS e da modernização de outros 70 aparelhos já existentes neste país.
 
Como assinalou recentemente um investigador do SIPRI «os principais importadores asiáticos procuram desenvolver a sua própria indústria de armamento e diminuir a sua dependência de fornecedores externos». A China é o exemplo mais notório pois passou de principal importador mundial, entre 2002 e 2006, para a quarta posição, durante o qual ainda e aumentou as suas exportações em 95%.
 
O relatório realça ainda «aumentos significativos» do comércio de armas em zonas como o Norte de África, o Sudeste Asiático e o Sul do Cáucaso, notando ainda que os principais exportadores mantiveram os fornecimentos aos países das chamadas «revoltas árabes»: na África do Norte, as entregas de armas convencionais aumentaram 273% entre os dois quinquénios. Em Marrocos, o aumento foi de 443%.
 
O desenvolvimento das forças produtivas
 
Tal como não teria considerado, na Critica da Economia Política que é O Capital, o dinheiro simbólico (ou fictício) e creditício mas só o que tinha base material, Marx não poderia associar ao desenvolvimento das forças de produção, e ao “papel altamente revolucionário da burguesia” nesse aspecto da evolução histórica, o desenvolvimento verdadeiramente trágico das forças de produção de carácter e função destruidora.
 
No entanto, na análise do funcionamento da economia capitalista, Marx teve a clarividência de encontrar a mudança de objectivos por via da classe dominante e exploradora, colocando no início da fórmula geral do processo de produção e de circulação do capital, o capital na forma de dinheiro e no final o objectivo de mais capital na forma de dinheiro, com as suas metamorfoses, D – M …P… M’ – D’, assim como de encontrar as conexões essenciais, e as contradições intrínsecas a esse funcionamento, em permanente crise larvar e com periódicas “explosões”, de que a única “saída” é a da destruição das forças produtivas.
 
Por isso, é perfeitamente coerente com a “leitura” marxista da História o papel crescente da indústria do armamento no capitalismo, e a evolução demencial das forças “produtivas” com poder de destruição. O que sobretudo se concretizou, como salto qualitativo, na chamada II Guerra Mundial, e com as armas que nasceram da fissão nuclear.
 
E enquanto para o socialismo, a Paz é uma necessidade humana, ainda que quem lute por ele tenha de se defender, individual e colectivamente, para o capitalismo a destruição de forças produtivas, as guerras, são necessidades para alcançar os objectivos e para a sobrevivência (do sistema de relações sociais que não da Humanidade).
 
Não se trata de maniqueísmo, ou de perspectiva ideológica afunilada, mas de interpretação (que não se pretende nem única nem infalível) do processo histórico, e que a História vem confirmando.
 
No tempo em que…
 
Nos anos 70 do século XIX, aproveitando o que antes se entendera do mundo e da vida, na economia particularmente com os clássicos, Adam Smith, David Ricardo e outros, procurava entender-se a vida e o mundo, “ler-se” a História, encontrarem-se caminhos de transformação para o sentido da aventura humana.
 
Não se dispunha de automóveis e aviões, não se usavam computadores, processadores de texto e folhas de cálculo, não havia luz eléctrica, telefone, telecomunicações, televisão, electrónica, frigoríficos, micro-ondas e tanta outra coisa que já ultrapassou qualquer pobre escrevente que agora procure exemplos.
 
Comprar, então, 6 metralhadoras era acto a exigir proposta de lei e autorização formal que hoje submarinos e outros “brinquedos” dispensam, ou ultrapassam na voragem dos negócios, motores da actividade de grupos dominantes, dominadores e servidos por representantes eleitos pelos povos, e que traem os povos no seu desejo de Paz.
 
A guerra, as guerras, a destruição, não são fins em si, são meios para alcançar fins sem se olhar a meios… sejam eles quais forem. A corrida aos armamentos é uma corrida insana, que não se faz pelo gosto de… correr, o consumo das armas não se faz por maldade ou desejo mórbido de matar e destruir (salvo em casos mórbidos), a destruição de forças produtivas não tem a finalidade de criar condições para que mais e melhor se tenha de construir. Resultam de dinâmicas próprias, intrínsecas, a um tipo de relações de produção, visando a concretização de objectivos sempre mais afastados de valores e critérios de Humanidade e Paz.
 
Sérgio Ribeiro